quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Classes sociais existem?

O leite tipo A


No posto de saúde municipal do Bonfim, um bairro paupérrimo de Cabreúva, a 60 quilômetros de São Paulo, forma-se 1 vez por semana a fila do leite. Nesta fila postam-se aflitos junto ao muro do prédio, ao sol do meio-dia, idosos, mulheres e crianças, ansiosos, aguardando o inicio de distribuição do valioso liquido. Ao vê-los e ser olhado por eles, me senti constrangido. Todos me olhavam. Inocentemente, eles fizeram com que me sentisse uma espécie de alienígena ou estrangeiro, alguém que sem autorização, invadisse um momento privado e intimo, um momento onde todos declaravam e aceitavam quase que silenciosamente a própria penúria. Exatamente nessa hora, a metro e meio da fila, entrei em meu carro importado, grandalhão, e então quis desaparecer, de tanta vergonha, mas meus compromissos me obrigaram a ligar o carro, manobrar devagar e com cuidado, as crianças brincavam logo atrás, a fila de estendia por uma estreita passagem externa, onde deveriam caber eu e meu carro e as pessoas juntas a parede. Enquanto olhava para trás, preocupado com as crianças, me olhavam através do vidro fume, eu os via pelo canto dos olhos, foi muito difícil passar por aquilo. Quando sai para a rua e acelerei, entrou um pouco de ar fresco e então comecei a pensar em todos os argumentos contra os programas de assistencialismo do pais, imediatamente veio um onda de raiva contra os críticos na chaise longue, pensei “como deveriam estar aqui em meu lugar, vendo o que vi e sentindo oque senti”, aqueles que freqüentaram universidade e aqueles do meu circulo de amizade, nesse turbilhão de pensamentos e imagens e lembranças e confusão de valores tentei perceber qual o papel daquelas pessoas. Por que me olhavam daquela forma? Eram manipulados ou famintos? Aproveitadores ou acomodados? Vitimas ou chupins? Muitas vezes, fica mais fácil associar o que vemos e não gostamos, a realidade, a algo terrível ou evitado por nos. Parece ate que faz sentido. Assim não pensaremos mais no assunto, não nos lembraremos mais daquela cena, não refletiremos sobre as imagens que se sucedem através da TV-janela do carro. Repetiremos ad infinitum as mesmas idéias de sempre, imutáveis. Muitas vezes mal encarei as favelas ou os bairros pobres como depósitos de bandidos, ninho dos traficantes e de pessoas desvirtuadas. De crianças ávidas por começar no banditismo. Quando passava perto pela marginal Tiete, próximo a favela do Gato, mesmo dentro do carro, rezava para que o transito não parasse, travava as portas, evitava encarar qualquer pessoa por medo que alguém se invocasse comigo, ficava enrijecido e acelerava. Como cheguei a essa estúpida postura e a esses absurdos pensamentos? Através de teve ora bolas, dos jornais e das novelas. Tenho certeza que não aprendi isso em casa. Então, essas pessoas da fila do leite eram as mesmas pessoas da favela. Que no, ou, algo não fazia coerência. Pus me a pensar. Aquelas pessoas ali na fila eram as mesmas que horas atrás eu tinha atendido no meu consultório. E a historia que ouvi após atender um rapaz com deficiência mental, completamente dependente de sua tia, abandonado por sua mãe, que quando tinha um ano de idade era muito magrinho, “tinha menos de 1 quilo” disse a tia, explicando sinteticamente a condição adquirida. Conhecimento simples, popular. Nunca havia visto alguém que tivesse um retardo mental por falta de comida. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer!
Então perguntei:
Mas porque não deram comida para ele?
Ah doutor, minha irmã morava longe de todos nos, no interior do Paraná, ela bebia e tinha problemas mentais, o marido não ajudava em casa, ela vivia da ajuda dos vizinhos, então ninguém dava de comer para esse rapaz. Agora ele vive comigo, a minha irmã esta com câncer e foi internada e não sei se vai sair do hospital. Eu fui lá e busquei ele.
A distribuição do leite segue um importante critério nutricional. E destinado a crianças com 1 ano ou menos de vida, portanto vulneráveis a desnutrição e seus estragos.
Então as fichas começaram a cair. Essa população e vitima, da dificuldade de acesso à escola e realmente faltam vagas publicas, da falta de conhecimento a respeito dos riscos da desnutrição, da falta de assistência adequada às famílias de pacientes com doença mental, sorte daqueles que contam ainda com a ajuda dos vizinhos ou dos irmãos da Igreja! Aproveitadores? Das parcas oportunidades que lhes restam, que são as migalhas desprezadas pelos políticos e pelos mais abastados. Fiquei em duvida se eu vitimizava todos, se era por um sentimento de culpa misturado com ignorância. Ate poderia ser tudo isso mas eu não poderia negar, essas pessoas sofriam de todas as formas. Mas tão perto de São Paulo? Chocante mas eh assim. E como deve ser no restante do pais. Sabe, eh difícil ate imaginar em que situação devem viver as pessoas.
Em um outro dia, fui procurar mais informações sobre a fila do leite. O leite doado eh de saquinho, aqueles que a maioria de nos pouco vê hoje em dia. Procurei a composição nutricional do mesmo para checar se havia algum enriquecimento vitamínico, um mineral especial como Omega 3 e 6, alguma forma de prevenir a deficiência mental, garantir o bom desenvolvimento e nada! Apenas leite tipo “C”. O alimento remédio era descuidado, mal pensado para sua finalidade, simplificado e diluído ao extremo. Naquele momento percebi que as crianças continuariam tendo dificuldade para aprender, teriam o seu crescimento ameaçado, seriam franzinas como pequenos passarinhos ressabiados, e no futuro morariam nas mesmas favelas, e seus filhos viriam para a fila do leite, e suas esposas e suas mães.

7 comentários:

  1. Muito legal seu texto! É tão legal que me senti motivado a criar um blog novamente.

    http://solsujo.blogspot.com/

    Parabéns pelo último texto!

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  2. Muito obrigado, vá em frente, precisamos de boas idéias circulando pelo planeta!

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  3. Gostei da percepção. E é melhor ainda porque isso pode gerar debates e ações para que as situações mudem ou sejam melhoradas.

    Parabéns pelo texto.

    Abraço,
    Raiji

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  4. Esse seu texto, me fez pensar, até q ponto essa situaão de enormes constrastes em q o Brasil se encontra, onde coloco tambem de modo geral todos os paises mais pobres no mundo, não era assim tambem nos paises hoje ricos, desenvolvidos a 50 anos, ou 100 ou 200 anos atras?
    A situação no Brasil, como de todos, é fruto do descaso, irresponsabilidade dos poderoros (politicos, empresarios) q o administram, colhemos o q plantamos.
    O aconteceu nos paises ricos hj e em situação muito melhor para o povo em geral na sua historia?

    Parabens pela iniciativa do blog Sergio.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Caro Flavio,
    Alem de termos sido o ultimo pais do globo a ter abolido a escravidão, o que demostra nosso desenvolvimento humano atrasado e a dependência econômica do país em relação a força de trabalho escrava,fomos colonizados por uma nacao que atingiu seu auge em 1500 e após entrou em declínio, economicamente sustentada pela colônia, portanto em nenhum momento fomos formados, e deste tempo em diante nasceram apenas 2 classes de pessoas (como na India há varias castas). Brancos latifundiários e pretos escravos. Hoje, ricos e pobres. Pela ausência de padrões e reguladores morais, houve liberdade excessiva assim como falta de bom senso na organização social inicial liderada pelo senhor de engenho. Os brancos ricos usavam de forma descartável homens, mulheres e crianças (haviam os muleques negros de levar pancadas que era brinquedo do filho da casa grande). Essa elite agrária do Brasil colônia era extremamente inculta, analfabeta, o sistema quase feudal, um isolamento imenso entre as fazendas. O Brasil passou a ter um modelo de comportamento e regras a partir de 1808 apenas. Há 200 anos. Ano que vêm teremos o que comemorar!! Então, numa comparação franca: o propósito original dado ao Brasil e ao povo nos privou de educação, modos e respeito entre as pessoas. Não temos uma tradição de educação, valores morais nacionais, típico dos europeus mesmo iletrados. Hoje não nos incomodamos com as favelas repletas de brancos e negros pobres. Porque há séculos estamos acostumados. Se puder, leia Casa Grande & Senzala.
    Um abraço,

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